Numa altura em que o “aquecimento global” é re-baptizado de “alterações climáticas”, as estâncias de inverno debatem se com a falta de neve, levando algumas a fecharem ou a reduzirem as temporadas. A única estancia portuguesa, sofre no entanto de outro problema, também fecha…quando neva!
Sim, eu sei! Portugal não é conhecido como destino de montanha, muito menos de neve. No entanto, já todos assistimos ás autenticas romarias em que se transformaram os fim de semanas para “ir ver a neve”, e a “feira” em que a decrepita estrutura da Torre da Serra da Estrela se tornou. Uma estrangeira, em êxtase, por saber ser possível praticar snowboard cá, colocou-o da seguinte forma enquanto contemplava o “espectáculo”…
– “Isto parece um resort na Coreia do Norte”. O cenário ao por do sol, salvou me de uma temporada no “Gulag”.
É assunto recorrente de quem gosta destas coisas da montanha. Evitando o negativismo português, gostava no entanto de fazer umas comparações.
-“Ah, sempre foi assim! É o que temos. Faz parte! O que é que podemos fazer?”. Isto, vindo de um povo que deu a volta ao mundo em cascas de noz á vela, a comer biscoito e beber vinho.
Uma ventania desgraçada. A chuva transformara a neve da “maior área esquiável recente”, numa argamassa compacta e húmida que dificultava o deslizar da prancha. A falta de visibilidade impedia de ver um palmo á frente do nariz. Óculos embaciados, luvas encharcadas, dedos dos pés e mãos congelados, um pedaço de gelo que insistiu em encontrar uma abertura entre a gola do casaco e o queixo, conseguiu alojar-se em algum sitio do meu corpo que desconhecia ser impossível de aceder, fez me pensar se valia mesmo a pena o esforço. Já só os mais motivados insistiam em continuar, antes de se irem abrigar no único local disponível dentro da estancia. Já só pensava em despir o equipamento suado e ensopado, e aquecer me junto do crepitar convidativo das brasas e das labaredas da característica lareira destes espaços de montanha.
Quando lá chego, para meu espanto, estava desligada! Gentilmente interpolei um funcionário perguntando se era possível ligarem na.
- “A lareira está entupida!”. -Como assim? Em pleno inverno? A nevar lá fora, temperaturas negativas, com vento a entrar pelas caixilharias das janelas dum edificio velho, sem qualquer outro tipo de aquecimento, vão ter a lareira desentupida quando? No verão?
– “É, até nós passamos frio cá dentro!”. A culpa não era dela obviamente, nem de qualquer outro funcionário, que fazem o que podem, nas condições que lhes oferecem. Foi pouco depois, enquanto fazia conversa de circunstancia com outro desportista, que reparei conseguir ver o meu próprio bafo, e o de todos os outro utentes do restaurante. Voltei a vestir o casaco.
Em relação á comida, se a gastronomia lusa é conhecida por ser melhor que a de qualquer outro país de neve, porque é que a qualidade da deste estabelecimento está a par da das roulotes da berma da estrada? E não me estou a queixar do preço… é natural nestes sítios os preços serem mais elevados, principalmente quando não ha concorrência.
Recuando uns dias, no mesmo estabelecimento. A estancia tinha aberto Quarta depois do maior nevão da temporada até então. Era Sexta, e a esplanada tinha pelo menos um metro de neve na maioria da sua extensão, só um caminho encharcado permitia o acesso ao interior do edifício. Tres dias tinham passado e o “metrão” de neve, agora gelo, continuava em quase toda a área de esplanada, ao ponto das pessoas já terem colocado algumas mesas em cima deste. Mas quem é que não gostaria de repor energias ao ar livre, num dia solarengo, contemplar o cenário, raro, e até gastar mais algum dinheiro? Mesas essas, assim como as interiores, cujo trabalho de limpeza é responsabilidade dos clientes seguintes porque não ha ninguém para as limpar. Para quem pensar que isto é um episódio pontual, desengane se, em Fevereiro, já mal havia neve nas pistas, mas adivinhem onde esta não faltava…É como terem um bar de praia no verão e obrigarem as pessoas a sentarem se dentro.
Continuando no melhor dia da temporada até então. 11.30 e a telecadeira ainda estava fechada. O meio mecânico de “ultima geração”, com vinte anos e com os assentos a cairem de podre, que permite aproveitar a totalidade da (pouca) área esquiável não estava operacional. Conheço as condicionantes á sua operação, mas na Serra estão parados com demasiada frequência. Os teleskis, ainda mais antigos, também avariam regularmente. A idade da infra estrutura, é evidente.
Portanto, temos uma estancia com poucos dias de neve, com meios mecânicos antigos, que não funcionam justamente quando são mais necessários! Como se não bastasse, ha filas para tudo e mais alguma coisa!
Numa entrevista, quando a estancia era patrocinada por uma empresa de telecomunicações. Alguém da gerencia, gabava se de ser uma estancia “ao nível de qualquer outra do centro da Europa”, após a introdução dos passes digitais. Um cartão RFID, fazia accionar o torniquete antes de cada subida. Atualização feita para substituir um sistema arcaico, a impressão duma etiqueta de papel com a data, que se pendurava á vista, e que criava filas intermináveis de espera para a sua aquisição. O novo sistema funcionava bem, como ainda funciona em qualquer “estancia do centro da Europa”, mas verdade seja dita, ou se estava la ás nove, ou perdia se uma hora só para o comprar, nas filas do interior apertado da edifício principal onde muitos dos utentes, insistem a carregar consigo os skis e pranchas, num espaço já de si limitado.
Vinte anos passados, toca a inovar. Não se usa dinheiro, compra se tudo online. Fantástico! Acabaram as perdas de tempo e podemos aproveitar pelo menos o pouco tempo disponível para esquiar! Só que não! Agora é preciso comprovar a compra e trocar o moderno código QR, imagine se só, por uma pulseira de papel com a data do dia! E só estou a falar do passe! Quem alugar equipamento prepara se para pelos menos duas horas, sim leu bem, duas horas na fila para poderem levantar o equipamento adquirido on-line! Se por acaso teve a infeliz ideia de ir fazer vários dias de neve na nossa serrinha e contribuir para o desenvolvimento da mesma, prepare se para repetir o processo…todos os dias! Os passes são diários, ou seja, não pode comprar para vários dias seguidos, o equipamento alugado não pode sair da estancia, este processo é para se repetido diariamente! Para devolver o equipamento, se quiser aproveitar o dia todo, também existem filas para a sua devolução. Mal posso esperar pela próxima inovação….
No caso dos fim de semana ou feriados, necessita enviar um email, com comprovativo da compra, nome e hora de chegada. Um “porteiro” irá procurar o seu nome na “guest list”.
Já que falamos de filas. Vamos agora talvez á principal das queixas dos visitantes. Os acessos. É senso comum em Portugal que quando neva a estrada que corta o maciço central encerra. E sendo este o único acesso á estancia, esta não pode abrir, justamente quando existem as melhores condições possíveis. Isto não faz sentido! Vivemos no século XXI, e quando neva, a única estancia em Portugal, não pode abrir. Não estou a culpar quem incansavelmente faz o seu trabalho com as condições que lhes proporcionam, neste caso o pessoal do centro de limpeza de neve. Uma estancia que não poder abrir quando neva é o mesmo que uma praia não poder ser utilizada quando faz sol! É anacrônico! Mas infelizmente “é o nosso normal”, “é assim que sempre foi! O que é que nos podemos fazer?”
No sábado seguinte a afluência foi tal que as filas de carros estacionados nas bermas das estradas, e ás vezes em segunda fila, (eufemismo criado para atenuar estarmos a parar a viatura no meio da faixa de rodagem) iam da Torre até á Lagoa comprida, desciam pelo desvio para o Piodão e havia carros parados no centro dos cruzamentos. E Isto era o cenário em apenas um dos dois lados da montanha. A GNR tinha as mãos atadas.
Era o caos. Devido á falta de estacionamento, qualquer miradouro, espaço para inversão de marcha era um bom local para estacionar. O engarrafamento durou até depois do anoitecer, dificultando, se não impossibilitando o acesso de veículos de emergência, limpa neves, autocarros de 50 lugares (!) e dos reboques, que vieram resgatar veículos avariados.
O impacto ambiental desta afluência maciça de automóveis e pessoas á montanha, duvido que alguma vez tenha sido medido. Como se não bastasse, voltamos a ter o problema do lixo. Na estrada, não existem contentores para o efeito, nem WCs. Nem deveria, é uma estrada nacional, não é um parque de estacionamento.
Muitos fazem longas horas de viagem quando se deslocam á Serra e, portanto, vão ter de “fazer render o peixe”. A barriga dá de si, faz se o piquenique com o farnel trazido de casa, e os restos ficam espalhados pela montanha. Até fraldas de bebe são descartadas para a o chão. Se nevar antes do próximo fim de semana, a neve tapa e continua tudo bonito para a próxima romaria, quando derrete, o lixo continua lá. Por exemplo, os contentores existentes, no Covão da Ametade, estão constantemente a transbordar, e mesmo não estando, ha sempre gente que acha que o lixo é para por “na zona”, e não dentro dos contentores. Somos um povo muito porco. Na Coreia do Norte seria pena capital. Encontro mais lixo num dia na Serra que num mês nos Alpes! O Instituto de Conservação da Natureza, que é uma pedra no sapato de quem quer melhorar a Serra, e bem, anda onde nestes fins de semana?
Mas para ser justo, não podemos comparar a nossa serrinha aos Alpes. Vamos então comparar com uma montanha dum país cuja maioria conhece pela nacionalidade da personagem do Borat. Casaquistão, em Shymbulak! A Serra da Estrela está a anos luz…atrás!
Acesso á estancia, uma telecabine! De génio, hem? Parque de estacionamento na base da montanha com terminal de transportes públicos, restaurantes, cafés, lojas, lavabos e caixotes do lixo. Quem se quiser deslocar á estancia e ao cume, só pode subir de telecabine. Com as naturais excepções de veículos de emergencia, staff e taxis. Com um pormenor, têm de ser eléctricos. Veículos a combustão, estão proibidos. ICNF, olá…! No topo de montanha existe um eco resort, integrado na paisagem. Acesso? Adivinhem, outra telecabine. Se na Serra conseguem inventar uma pista “preta” num planalto, também conseguem umas telecabines. Concentram as pessoas em dois ou três locais, onde lhes conseguem dar condições, permite lhes apreciar a paisagem sem ser de dentro do carro, ou a entupir a estrada, diminui-se o impacto ambiental, e imagine se lá, até se pode fazer dinheiro.
Já que estamos falar de um investimento de alguma dimensão, o que fazem essas estancias para não estarem dependentes da neve? Abrem o resto do ano para outros desportos! Adaptaram as telecadeiras ao transporte de BTTs e as telecabines operam o ano inteiro. E não me venham com o impacto ambiental ou com a desvirtuação da paisagem. Os Alpes, os Dolomitas e os Pirineus estão cheios delas e mais bem conservados e mantidos. No Cazaquistão conseguem, na Coreia do Norte também!
Outra rentabilização dessa estancia, nesse país recôndito. A pista até está no nome da nossa Serra…Estrela! Já alguma vez repararam no céu nocturno da montanha? Em Shymbulak fazem turismo astronômico. É impressionante o que se consegue enfiar numa telecabine! Na torre existem ruínas abandonadas, um centro comercial, gelado, com um cheiro nauseabundo e casas de banho porcas. Já vimos a ASAE fechar estabelecimentos por menos. Existe agora um restaurante em condições, com uma esplanada virada para a Serra do Açor e com vista para o por do sol, mas sofre do mesmo problema que o chalé na estancia, quando neva ninguém limpa a neve, provavelmente a gestão é a mesma.
A cereja no topo do bolo, ou a torre em cima da Serra, acontece quando “quem deve”, admite que os praticantes preferem ir para Espanha….pudera! Com a falta de condições, o calvário a percorrer e a pontaria necessária para apanhar um bom dia, quem os poderia culpar? Da mesma maneira que quem, acorda, vê que ha boas ondas e bom tempo e decide ir para a praia de Matosinhos ou da Costa, o mesmo se passaria com a Serra, simplesmente porque “está logo ali”. Não ha viagens de avião, marcar transfere, reservar hotéis, etc etc. O que não podem fazer é culpar os portugueses de irem para o estrangeiro porque não lhes oferecem condições cá! Pensando bem, agora que escrevo isto, basicamente é um cenário que se repete no nosso país em muitas outras áreas. Uns veem a falta de condições como uma consequência, outros como a causa….
A nossa Serra é linda! Tem um potencial incrível! E precisa de ser cuidada, aproveitada e melhorada. Mas mesmo sem a possibilidade de vir a ser metade de Shymbulak, está completamente, sem qualquer sombra de duvida, sub aproveitada e negligenciada. Para quem pensa que não vale a pena o esforço, porque somos um país de mar, deixo uma pergunta, só fazem praia e surf em Bali?
Não ha muitos anos, quando Portugal era um destino desconhecido das massas, havia terrenos em frente á praia e edifícios inteiros ao abandona nas baixas do Porto e Lisboa. Quando colocados á venda, a reação do português era:
- “Amigo! “x” mil euros? Onde está o tesouro enterrado?”
Passados uns anos, os estrangeiros que tropeçaram em tais achados compravam aos quatro e cinco de cada vez, e a reação dos mesmíssimos portugueses foi;
– “Eles é que tiveram olho! Se eu soubesse! Como é que nós não vimos isto?”
Longe de desejar o mesmo fim dos locais anteriores, o tesouro está a vista de toda a gente. Depois não se queixem.